Discípulos ou multidão?

Apesar de ser uma pessoa considerada sociável por alguns, eu nunca me senti bem em grandes ajuntamentos de pessoas. Na adolescência e juventude era um esforço “precisar” participar de alguns lugares para me sentir pertencente – é claro que só hoje tenho consciência desse incômodo, porque se perguntar para uma amiga daquela época ela diria que eu era a “garota da galera”. Estranho o que nós fazemos para ser parte do bando não é? Dizem os cientistas que é o instinto de sobrevivência e que os grupos são necessários para o desenvolvimento social e cognitivo. 

Mas e as multidões, por que elas existem? De onde vieram? Que língua falam? Por que seriam necessárias à existência humana? Particularmente elas me apavoram e me deixam assustada. Não só a mim: Sêneca o filósofo estoico na sua carta sobre multidões, alerta para os riscos de se misturar com o público.

Ele defende que a multidão pode distrair o indivíduo da sua verdadeira essência, espalhar vício, perversão e levar ao ódio ou à corrupção, sendo a sabedoria e a paz encontradas na solidão e no convívio seleto. Ele foi cirúrgico na sua reflexão. E na Sétima Carta dele para o seu amigo Lucílio, escreve sobre as multidões, e explica porque um estóico (ou qualquer pessoa sã) deve evitá-las. Não li a carta toda mas já gostei de estar bem acompanhada no gosto pelos grupos menores e seletos.

Quero conectar as minhas ideias, entre os efeitos da multidão em nós, em contraste com o real valor e valores que encontramos nos pequenos grupos: 

O psicólogo organizacional Adam Grant, do qual sou fã, escrevendo sobre a generosidade em seu livro Dar e Receber, explica sobre os efeitos das conexões significativas na vida e no trabalho. E quando penso nos conselhos dele sobre ficarmos atentos aos tipos de pessoas com as quais convivemos, é ainda mais difícil, acreditar que existe algum ganho na tentativa do convívio fugaz e raso com muita gente. Grant escreve sobre os tomadores, doadores e compensadores. Recomendo a leitura e dou um spoiler aqui: os doadores não costumam estar nas multidões, os tomadores sim.

Olhando um pouco mais atentamente para a expressão tomadores, percebemos que na alma humana sempre haverão muitas necessidades e desejos a serem satisfeitos. O que o autor do Livro de Provérbios, Salomão, deixou bem claro no capítulo 27, versículo 20: “Os desejos das pessoas são como o mundo dos mortos: sempre há lugar para mais um”. Seria então “a multidão” um risco para nosso caráter humano insatisfeito? 

Acredito fortemente que Jesus, O Cristo de Deus, sabia pela própria experiência a resposta para minha irônica indagação. Na Sua breve jornada ministerial de 3 anos foi incessantemente assediado e seguido pelas multidões. Alguns buscavam cura para doenças e dores que apenas um milagre poderia sanar. Mas imagino que havia de tudo entre a multidão de seguidores. E talvez muitos com necessidades nem tão nobres assim. Pessoas que viam no Filho de Deus “um mágico” ou um profissional  motivacional, se for contextualizar para os nossos dias.

Onde estavam as pessoas que tinham sede por mais do que cura, prosperidade e respostas rápidas? Elas estavam nas multidões? As multidões o admiravam, mas quem eram os que queriam se inspirar Nele, copiar a sua maneira de viver e aprender a ser como Ele? 

Finalmente lemos no livro de Mateus, capítulo 5 e versículo 1: Quando Jesus viu aquelas multidões, subiu um monte e sentou-se. Os seus discípulos chegaram perto dele”. Quero destacar aqui a palavra “perto”. Os chamados discípulos e discípulas queriam relacionamento com seu Mestre, ansiavam por um Senhor e não apenas um Salvador. Os discípulos ficaram tão perto ao ponto de terem seus nomes registrados para sempre, não como seguidores apenas, mas como amigos do Cristo. Perto o suficiente até encostar a cabeça no seu ombro, como fez João. 

Concluo refletindo que ao longo da vida vacilamos entre ser multidão ou discípulos. Isso acontece quando a cultura da pressa e da ambição desmedida absorve nossa alma. A grande tentação é pelo consumo de fórmulas de sucesso oferecidas aos montes. Mas o que nos protege desse assédio e nos mantém com um coração de discípulos e discípulas? Um coração que valoriza a presença, a escuta e a intimidade com Deus.

Queremos mesmo ser verdadeiros discípulos que não olhem somente vendas, ganhos e networking de qualidade?Tudo isso é útil e necessário para a nossa sobrevivência, não me julgue mal. Mas a minha forte crença é de que precisamos de filtros para escolher lugares mais altos do que os lugares de multidões. Aqueles lugares em que somos transformados através de diálogo genuíno, inspiração espontânea e empatia afetuosa.

E quem sabe, assim como os beta bloqueadores, são medicamentos que bloqueiam a ação de hormônios do estresse no coração, teríamos os beta bloqueadores da alma: momentos de sentar à mesa como um discípulo, experimentar ser visto e se deixar ver, pelo irmão ao lado e pelo Mestre à frente. Perto o suficiente para aprender, conviver e ser influenciado pelas verdades dos corações e não apenas pelas aparências dos comportamentos.

Ser discípulo é transformador e desafiador ao mesmo tempo. Demanda lealdade, resiliência e muita determinação. Talvez por isso seja mais fácil ser multidão. 

Um abraço!

Gisele Cipili

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